Perante a Lei

Day 2,021, 21:26 Published in Portugal Portugal by Citizen 99
Perante a Lei senta-se um porteiro. Chega a este porteiro um homem do campo que pede para entrar na Lei. Mas o porteiro diz que não lhe pode conceder entrada de momento. O homem pensa sobre isso e de seguida pergunta se ele terá permissão para entrar em algum momento no futuro. "É possível," diz o porteiro, "mas não agora."

O portão para a Lei está aberto, como sempre, e o porteiro caminha para o lado, então o homem inclina-se para ver através do portão para o seu interior. Quando o porteiro repara nisso, ele ri e diz: "Se o tenta assim tanto, tente entrar, apesar da minha proibição. Mas tome nota. Eu sou poderoso. E eu sou só o mais humilde dos porteiros. Mas de sala para sala há porteiros, cada um mais poderoso que o outro. Eu não posso sequer suportar o vislumbre do terceiro."

O homem do campo não esperava tantas dificuldades: a Lei devia ser sempre acessível a qualquer um, pensou, mas agora que olha atentamente para porteiro no seu casaco de pele, para o seu grande nariz pontiagudo e para a sua barba longa, fina, preta, ele decide que seria melhor esperar até que obtenha permissão para entrar. O porteiro dá-lhe um banco e deixa-o sentar-se em frente ao portão.

Lá ele se senta durante dias e anos. Ele faz várias tentativas para que o deixem entrar, e ele cansa o porteiro com os seus pedidos. O porteiro muitas vezes interroga-o brevemente, questiona-o sobre a sua terra e muitas outras coisas, mas são perguntas indiferentes, do tipo que grandes homens colocam, e no final ele diz-lhe sempre que mais uma vez que não pode deixá-lo entrar ainda. O homem, que equipou-se com muitas coisas para a viagem, gasta tudo, independente do quão valioso, para conquistar o porteiro. Este aceita tudo mas, assim que o faz, diz, "Eu aceito isto só para que não pense que falhou em fazer algo."

Durante muitos anos o homem observa o porteiro quase continuamente. Ele esquece os outros porteiros, e este primeiro parece-lhe o único obstáculo para a entrar na Lei. Ele amaldiçoa a situação infeliz, nos primeiros anos com firmeza e em voz alta; mais tarde, ao envelhecer, ele apenas murmura para si mesmo. Torna-se infantil e, durante os longos anos estudando o porteiro este também veio a conhecer as pulgas na sua gola de pele, ele até pede às pulgas para o ajudar a persuadir o porteiro.

Finalmente a sua visão enfraquece, e ele não sabe se está a escurecer à sua volta ou se os seus olhos o enganam. Mas reconhece que agora na escuridão uma iluminação que sai sem cessar para fora do portão da Lei. Agora que não tem muito tempo para viver.

Perante a sua morte ele reúne na sua cabeça todas as suas experiências de todo este tempo numa questão que ainda não colocou ao porteiro. Ele acena para ele, já não consegue levantar o seu corpo enrijado. O porteiro tem que se curvar para baixo para ele, pois a grande diferença mudou as coisas consideravelmente em deterioramento do homem. "O que queres ainda saber?" perguntou o porteiro. "És insaciável."

"Todos procuram a Lei," diz o homem, "então como é que em todos estes anos ninguém excepto eu pediu para entrar?" O porteiro vê que o homem está já a morrer e, de forma a alcançar a sua diminuída audição, grita para ele, "Aqui ninguém mais pode entrar, pois esta entrada foi atribuída apenas a si. Eu vou agora fecha-la."

Franz Kafta: Before the Law