[MdCult] A Hora do Medo - Boitatá

Day 4,287, 23:40 Published in Brazil Brazil by Ministerio da Cultura


Sábado, 17 de Agosto de 2019, dia 4287 do Novo Mundo
Gabinete da Diversão ou do terror, eBrasil.

Olá, eBrasileiros!

Primeiramente quero agradecer ao nosso queridíssimo CP King Dom Miguel O Vader por me dar a honra de continuar à frente do Ministério da Cultura. Se você tem interesse de nos ajudar com sugestões ou críticas, entre em contato com a equipe! No mais, divirtam-se com mais um quadro do Ministério.

Att,
Lady Nakeesha Velaryon



Seja bem-vindos a mais um quadro do Ministério da Cultura: A Hora do Medo. Nesse projeto compartilhamos com a população, histórias, lendas e contos de terror, sempre que possível correlacionando-o com algum elemento do folclore brasileiro.

Acomode-se na sua poltrona, pegue sua caneca de chá, sintonize a rádio nas músicas de suspense, reduza as luzes do ambiente e venha conosco.





Desbravando as matas tropicais da colônia, um explorador português solitário chamado João fazia seu nome e finanças como caçador de recompensas. Diferentemente de indivíduos privilegiados de seu tempo ele não tinha uma capitania, territórios ou posses significativas, sua situação era justamente a oposta. Após uma série de maus negócios em sua terra natal tomou uma medida desesperada: juntou seus últimos recursos e embarcou para tentar a sorte no novo continente.




No início fazia um pouco de tudo, explorava novos territórios, garimpava pedras preciosas e até mesmo caçava indígenas e escravos fugitivos. Certo tempo se passou e foi adquirindo maior estabilidade financeira, sendo capaz de optar por exercer seu tempo e esforço em um comércio especial. Tinha contatos que lhe ofereciam uma rentável modalidade de caça: a de aves silvestres. Entusiastas portugueses pagavam quantias generosas por espécies exóticas e belas até então desconhecidas em solo europeu, estivessem elas vivas ou mortas.



Neste dia porém ele não estava em sua melhor forma, nenhuma das armadilhas lhe trouxe retorno e inclusive algumas foram destruídas. Sua fiel espingarda, outrora crucial para certos espólios e histórias, também não trouxe resultados. Talvez o alerta do pajé que havia encontrado ontem fosse verídico, o chefe da aldeia local havia lhe avisado que a região era protegida por um guardião e que caçadores voltavam de mãos vazias. Pouco caso fez o bandeirante, para ele era óbvio que se tratava de uma tentativa do líder indígena preservar sua tribo e os supostos espíritos da floresta.



A noite chegou e a teimosia foi superior ao cansaço, João se recusava a sair da região sem um único animal apesar das condições desfavoráveis para a empreitada. A temperatura era agradável, mas a visibilidade quase nula, apenas a luz do luar e das estrelas iluminava a densa mata. A música animal que a floresta emanava auxiliava a confundir sua percepção, cigarras pareciam cantar em coro para impedir qualquer tentativa de foco do caçador.




- Raios! – exclamou o bandeirante

Teve que aceitar que sua tocaia seria inútil, um local mais aberto, com menos galhos e arbustos seria um bom local para descanso e reorientação. Já considerava a hipótese de desistir e voltar para casa, um dia da caça, outro do caçador diz o ditado. Em pouco tempo conseguiu encontrar uma minúscula clareira cujo centro era ocupado por uma grande árvore. Imponente, misteriosa e destoante das demais talvez a anciã fosse o próprio coração da floresta. Seria um ambiente bonito sob a luz do sol, mas naquelas circunstâncias havia algo de estranho no local, uma presença sem forma definida.



João nunca foi um homem de fé, não seguia nem mesmo os costumes de sua própria terra natal, porém naquele momento conforme se aproximava da árvore crescia uma incômoda sensação indescritível. Apesar de provavelmente ser o único humano nas redondezas sentia-se observado, a cada passo a escuridão da mata parecia mais viva e envolvente, seus passos já não eram voluntários, tornou-se por alguns segundos um mero espectador das ações de seu corpo, não como marionete, mas como entidade que caminhava sem comandos.



Chegando um pouco mais próximo da árvore sentiu que suas botas lamacentas pisavam em algo diferente, uma estrutura mais rígida e firme. Lentamente abaixou a cabeça para visualizar e encarar uma pedra, mas a realidade lhe mostrou outra coisa: ossos. Um odor pútrido entregava uma estimativa da data de morte, já era um estado avançado de decomposição. Uma gota de suor frio escorreu pelo seu rosto, na baixa luminosidade não conseguia visualizar com clareza qual a origem do material, apenas desejava com todas as forças que não fosse humano.

Enquanto é atordoado com suposições e linhas de raciocínio um forte vento sopra balançando os galhos das árvores. De forma muito conveniente a luz do luar repousa suave sobre o chão e responde ao questionamento. Os ossos eram pequenos, provavelmente de uma ave ou roedor, o caçador então se livra de parte da tensão em seu corpo com um suspiro de alívio. Breve momento de paz, uma visão mais atenta permite visualizar o restante do solo do local, um cemitério aberto de ossos e carcaças animais.



A respiração cessa, choque, confusão, nunca havia visto tal situação e talvez fosse melhor nunca ter presenciado tal cenário. As cigarras rompem o clima e clamam por sua atenção, fazem barulho tamanho que lhe provoca uma forte ira, sobrepondo-se aos demais sentimentos. Sem pestanejar alcança sua aliada e se prepara para dar um basta na situação.

- Calem-se! – grita atirando com sua espingarda em direção ao solo.

A mata responde de imediato e um forte clarão surge na árvore, uma enorme figura tenebrosa começa a tomar forma envolvendo e circundando a estrutura. Sem qualquer aviso uma sinistra serpente de fogo com incontáveis olhos se manifesta imponente. Não bastasse o tamanho e o aspecto anormal da criatura ela adotava uma postura dominante e implacável, talvez pudesse derrubar exércitos sem qualquer esforço. Por mais corajoso que fosse o português seu corpo tremia e mal conseguia permanecer de pé. Sua fiel amiga era pesada demais para as mãos naquele momento, ela então cai ao solo sem qualquer resistência por parte de João.



Um som estridente é emitido e com ele vai embora todo e qualquer senso de luta do caçador. Seus instintos lhe dominam e o incitam a correr na direção da mata fechada, achar um esconderijo, pedir ajuda, qualquer coisa que lhe tirasse daquele ambiente. Por mais que não pudesse visualizar cinco passos à sua frente qualquer local seria mais seguro que aquele. Ele corre, apenas corre, como nunca o fez em sua vida, nem na que já tinha vivido, nem na que viria após o evento. Vida essa que nunca mais seria caçando, nunca mais seria na mata, nunca mais na colônia.




Explicações sobre a história


O Boitatá é a mítica figura de uma cobra de fogo que protege as matas e campos. Existem várias diferenças na história e no nome da entidade de acordo com a região do país. No Rio Grande do Sul recebe as nomenclaturas de baitatá, batata e boitatá. Na Bahia é biatatá. Em Minas Gerais é bata. No Nordeste é Batatão. Em Sergipe e Alagoas chega até mesmo a ser denominado Jean de la foice ou Jean Delafosse. É sério. Em Santa Catarina a figura é representada como um touro. De fato trata-se de um conto de nosso folclore que se modificou bastante de acordo com a região.

Em uma versão gaúcha da história temos um período de noites sem fim associada a uma enchente. Nesse contexto a cobra boiguaçu, adaptada para caçar na escuridão, começa a se alimentar de outros animais, em especial dos olhos deles. Nesse processo ela adquiriu a grande quantidade de olhos e o aspecto de clarão vivo, uma cobra de fogo.




O nome mais conhecido tem origem na língua Tupi – boi (cobra) e tatá (fogo). Um dos relatos mais antigos registrados é de 1560, do conhecido Padre jesuíta José de Anchieta:


“Há também outros (fantasmas), máxime nas praias, que vivem a maior parte do tempo junto do mar e dos rios, e são chamados baetatá, que quer dizer cousa de fogo, o que é o mesmo como se se dissesse o que é todo de fogo. Não se vê outra cousa senão um facho cintilante correndo para ali; acomete rapidamente os índios e mata-os, como os curupiras; o que seja isto, ainda não se sabe com certeza.”

Uma explicação científica para o mito passa por uma reação química com o fósforo branco, elemento proveniente de ossos animais em estado de decomposição. Em contato com um raio ou faísca o fósforo é ativado e surge uma chama.


Autor: Zero Bone